Mas foi o que eu fiz. Ontem matei-te, Lil.
Desculpa. Não consigo parar de te pedir desculpa. Foi a última coisa que te disse antes de nunca mais te ver.
"Fizeste tudo o que podias", "não te podes culpabilizar", "estás a fazer a coisa certa", "é o melhor para ela". Não percebo por que é que toda a gente se esforça por me fazer sentir bem em relação a isto. Eu tenho que me sentir mal. Tu eras responsabilidade minha, eu prometi tomar sempre conta de ti e fazer tudo por ti para que tivesses a melhor vida possível. "Fizeste tudo o que podias". Tretas. Eu não fiz nada. A única coisa que eu fiz foi consentir que te metessem aquele líquido azul na veia.
Não páro de repetir o dia de ontem na minha cabeça. Tu sem reacção, eu a dar-te comida com a seringa, tu a deixares cair tudo para cima das minhas calças, limpar as calças, dar-te duas injecções, comer meia sandes de queijo, meter-te na transportadora, tu sem reação, a viagem de autocarro, tu sempre sem reacção eu a tentar não chorar, preparar-te a box no hospital, pôr-te na box, o saco de água quente, mudar-te de box, tirar-te da box, segurar-te enquanto te põem o catéter, deixar-te mexer, rapar a outra pata, preparar o sistema de soro, colocar-te novamente na box e deixar-te lá, sempre sem reacção.
Ir trabalhar, desesperar por notícias, finalmente tê-las, ouvir "prognóstico reservado" e "estado depressivo muito avançado", "não há muito mais que se possa fazer para além do que já está a ser feito". Eu ouvi aí que tu ias morrer. Eu soube aí.
Mas é quando te vejo outra vez ao final do dia, ainda pior que de manhã - quando eu achava que isso não era possível - e depois quando chegam os resultados das análises, o "oh Sílvia não são nada boas notícias", o "é PIF" aí eu soube que tu não ias morrer. Eu é que tinha de te matar. E decidi isso depois de perguntas básicas e de um "está bem, só um bocadinho."
Estou já tão arrependida. Desculpa não ter lutado mais por ti. Devia ter-te dado pelo menos mais um dia. Desculpa ter desistido logo e ter consentido logo.
Eu sei que tu já não "estavas cá"... ainda assim.
Desculpa, desculpa, desculpa, desculpa.
Não me consigo mentalizar que nunca mais te vou ver e dar abracinhos. Que nunca mais vamos brincar e dormir juntas. Que nunca mais vais ronronar para mim. Que nunca mais vais correr quando ouves uma lata a abrir ou a porta do frigorífico. Que nunca mais vais raspar com as patas em todo o lado. Que nunca mais vais ter comigo quando o despertador tocar. Que nunca mais te vais sentar e dar-me as patinhas quando eu peço. Que nunca mais vais estar à porta à minha espera quando eu chego a casa. Que nunca mais vais ser a primeira coisa que eu abraço e mimo quando chego a casa. Que nunca mais há mais Lil.
Foste uma gatinha única e especial. A melhor, a gata mais fixe do mundo - como eu não parava de te gabar a quem perguntasse.
Não tive sequer direito a dois anos contigo, Lil. Tu não merecias isto. E eu também não...
Lil.
Lilocas.
Lilocas Pipoca.
Pipoquinhas.
Lilinda.
"Desculpa" foi a última coisa que eu te disse mas "amo-te" foi a última que tu ouviste.
Amo-te.
Para sempre.
Sílvia.